Lucas Anjos*
A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) forneceu novos contornos interpretativos sobre as hipóteses legais de tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. Por meio de Enunciado, publicado em 25 de Maio de 2023, fixou-se novo entendimento interpretativo do art. 14 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), no sentido de possibilitar a utilização das hipóteses legais dos artigos 7º e 11, e desde que observado e prevalecente o seu melhor interesse, para tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes.
Ao proferir seu voto nos autos do processo de elaboração do Enunciado (PROCESSO Nº 00261.001880/2022-84), o Diretor Relator Arthur Sabbat enfrentou as três possibilidades interpretativas que recaem sobre o art. 14 da LGPD, abaixo transcrito:
Art. 14. O tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse, nos termos deste artigo e da legislação pertinente.
§ 1º O tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal. [...]
§ 3º Poderão ser coletados dados pessoais de crianças sem o consentimento a que se refere o § 1º deste artigo quando a coleta for necessária para contatar os pais ou o responsável legal, utilizados uma única vez e sem armazenamento, ou para sua proteção, e em nenhum caso poderão ser repassados a terceiro sem o consentimento de que trata o § 1º deste artigo.
Sem ter como premissa (re)visitar todos os fundamentos do relatório, cabe dizer que, até então, a interpretação mais restritiva possível era a mais amplamente difundida e aplicada nas ações de conformidade legal.
E assim, ao tentar encaixar todas as possíveis atividades de tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes apenas na base legal do consentimento (por pelo menos um dos pais ou responsável legal), ou nas duas exceções do §3º (contatar os pais ou o responsável legal ou para sua proteção), via-se um real conflito para tratamento em atividades legítimas e fundadas no melhor interesse da criança.
Apenas para situar o leitor, no art. 7º da LGPD são indicadas as hipóteses legais que autorizam o tratamento de dados pessoais, são elas o consentimento, execução de contrato, cumprimento de obrigação legal ou regulatória, para proteção da vida, dentre outras. Já no art. 11, são listadas outras 8 (oito) hipóteses legais direcionadas a autorizar a utilização de dados pessoais sensíveis (dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico…).
Retomando o voto, permitir o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes apenas com base no consentimento do responsável legal ou de um dos pais, colocaria-se obstáculo técnico e prático a diversas atividades privadas e de políticas públicas relacionadas à crianças e adolescentes, tais como aquelas voltadas para a tutela da saúde em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária.
Outro exemplo citado é a possibilidade de revogação do consentimento, dado pelos pais, ao tratamento de dados realizado em uma escola, negando o direito de ensino à criança e indo de encontro ao seu melhor interesse. Seria então um “potencial conflito entre o melhor interesse da criança e o consentimento”.
Dessa forma, corrobora o Relator a proposta de Enunciado que permite a ampliação da interpretação sobre o art. 14 da LGPD, “qual seja, a aplicação das hipóteses legais previstas nos artigos 7º e 11 em leitura conjunta com o art. 14 da LGPD ao tratamento de dados de crianças e adolescentes, pois ao possibilitar o tratamento de dados, com amparo em diferentes hipóteses legais, com a inexistência de hierarquia entre elas, reforça-se a relevância do princípio do melhor interesse e aos demais princípios e regras previstas na LGPD e na legislação pertinente.”
Por fim, assimilo positivamente o citado Enunciado, na medida em que haverá menos óbices técnicos ao fundamentar atividades de tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, ainda que, conforme a legislação, seja eleito o consentimento ou outra hipótese legal, o agente de tratamento deve considerar o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, previsto nos arts. 227 da CF/88 e 7º do ECA, sob pena de tal tratamento ser considerado ilícito e/ou irregular.
*Lucas Anjos é advogado e data protection officer (DPO), pós-graduando em compliance, auditoria e controladoria pela PUC-RS, associado ao escritório Cerveira, Bloch, Goettems, Hansen & Longo Advogados Associados, atuante no consultivo empresarial, cível, consumidor e líder de projetos de adequação de empresas à LGPD.