E se a gente lesse a Bíblia com um olhar feminista? Essa é a minha proposta da italiana Tea Frigerio, missionária de Maria Xaveriana que vive no Brasil desde 1974 e membro do Grupo de Mulheres da REPAM-Brasil. Tea quebra preconceitos supostamente “fundamentados” na Bíblia, ela acredita que “o patriarcado, para se sustentar, precisa criar e alimentar inimizade entre as mulheres. não é o caso de reverter a pirâmide: de colocar a mulher no topo e o homem embaixo, mas, sim, mudar as relações, que se tornem relações de reciprocidade, de parceria, de igualdade, de perceber que tanto o homem quanto a mulher fizeram avançar a história.
Dentro da Igreja Católica Apostólica Romana, embora se diga que o Deus não tenha sexo, todos os paradigmas ligados a Ele são masculinos. Porém, na Bíblia, sobretudo no Primeiro Testamento, o espírito de Deus é feminino, é Ruah, a divina energia que dá vida a tudo. E quando pensamos que tudo é holístico, então não se pode ter um Deus monoteísta.
A espiritualidade antecede a religião seja antropologicamente que historicamente. Religião é uma estrutura de dogmas, ritos, credos, comportamentos, atitudes... Espiritualidade é Ruah, vento, respiração, processual, dinâmica. Posso ter uma religião e não ter espiritualidade. A espiritualidade vive além e antes da religião. Uma pessoa que se diz ateu pode ter uma profunda espiritualidade.
O texto bíblico nasce num mundo patriarcal, foi escrito no mundo patriarcal, e, sobretudo, foi interpretado num mundo patriarcal. A partir disso, você pode perceber a má interpretação que foi feita dos textos bíblicos no próprio texto bíblico.
Há uma forte conexão entre o sagrado feminino, a natureza e a espiritualidade. Neste sentido, avalio essa conexão, em relação às religiões que limitam ou até criminalizam a manifestação da mulher, de seu corpo e sua espiritualidade.
Tea parte do medo que a religião, o cristianismo tem do corpo, sobretudo do corpo da mulher. Nas guerras, o que o conquistador faz? Pisa na terra e pisa na mulher. Olha a Amazônia, ela é selvagem, incontrolável, assim como o corpo da mulher. Ela perde sangue, mas não morre. A violência que se faz à terra é a mesma que se faz à mulher. Há algo na Natureza e na Mulher que o homem (macho) não controla. É o poder da vida. Então, é preciso controlar, explorar, inibir. É preciso possuir, porque possuir a terra e possuir a mulher é afirmar: o domínio, o poder, a superioridade. Isso é patriarcado.
Anos de convivência na Amazônia, a missionária aprendeu com os povos originários, as mulheres, suas fortes conexões com a Natureza, eles, elas foram meus mestr@s de espiritualidade: sua conexão, interligação... Tudo está interligado, somos irm@s, parentes. Isso vem de longe, da convivência, penetrando em sua antropologia e cosmovisão, entender a conexão com a Natureza. Moro em Belém e quando a Santa do Círio de Nazaré passa sinto uma energia poderosa, uma energia que vem do povo, daquele estender a mão, acreditando que o Divino está presente na cultura-religiosidade do povo, que não é verbalizada, vivida. É vento, ar, Ruah... Espiritualidade não é algo evanescente, é vida, conexão. É sentir que há comunicação, vida fluindo. O vento me fala do espírito, a terra me fala do Divino que é Mãe, que é Vida, Pachamama; os rios são esta seiva que corre, como o sangue corre em nós. Os passarinhos que de manhã cantam fazem pensar no agradecimento à vida. Os povos indígenas, os povos originários, quilombolas, as mulheres me ajudam a ser agradecimento.
Há sim uma conexão muito forte entre a Mulher e a Natureza, elas carregam a vida, elas têm a intuição, o cuidado, que não é só delas, também o homem tem, assim como as mulheres têm a racionalidade, mas são manifestadas de maneiras diferentes. O patriarcado nega a diferença, então sente a necessidade de dominar, de destruir, de controlar e possuir. O feminicídio é isso.
Defendendo que as mulheres mais pobres são as primeiras e mais atingidas pelos efeitos. Principalmente as mulheres negras e indígenas. Nesse contexto, basicamente permeia todas as ações da irmã Tea. As ações voltadas para proteção dos povos indígenas, especialmente no recorte de raça e classe das pessoas que agora são refugiadas ambientais. A importância da mulher sobre a preocupação com os efeitos das mudanças climáticas e tem assumido protagonismos na agenda ambiental.
O ecofeminismo busca pôr fim à cultura patriarcal, de submissão da mulher frente ao homem e aos governos, busca uma relação de parceria, de igualdade e melhoria de condições de vida. Na defesa do meio ambiente, busca a valorização de todos os seres e da vida, como um bem a que todos têm direito.
Esta atitude é apostar nessa mudança. Não somente verbalizar, mas dar voz às feridas, as dores e juntas elaborar caminhos de solução que se experimentem no dia a dia demonstrando que são caminhos possíveis e viáveis. Há na mulher, nos grupos a margem uma força vital que no cotidiano da vida desprende criatividade, vitalidade pois a vida e a sua defesa estão enraizadas no seu mais íntimo: o poder da vida está nelas.